domingo, 2 de outubro de 2011

Bistrô Bom Demais - CCBB

14 de setembro de 2011. No menu da noite, Adélia Prado, poeta mineira maravilhosa, no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), conversando com o público, lendo suas poesias, respondendo perguntas. Quando soube disso, pedi até licença pra sair um pouco mais cedo (é preciso retirar a entrada na bilheteria do CCBB uma hora antes e eu não podia perder essa conversa).

Levei alguns lenços de papel na bolsa porque com a Adélia Prado é assim, a voz dela ecoa no coração e ele responde com a lágrima, não tem jeito. A poesia que flutua entre os expectadores é tão vívida que movimenta tudo dentro da gente. A alma suspira, o espírito sente falta de ar com o impacto do que se revela diante dos nossos olhos, tão claro, tão simples, tão fácil de se perceber e eu nunca percebi antes. Porque as cenas que ela descreve são corriqueiras, do nosso dia a dia, mas ao mesmo tempo possuem um enlevo que nos faz refletir. Essa é Adélia Prado, gente, quem não conhece que corra para conhecer e se maravilhar!

Cheguei uma hora antes, peguei meu ingresso e fui tomar café no Bistrô Bom Demais. É um lugar curioso esse bistrô. A área reservada aos clientes fica em um pátio cercado por vasos de plantas, eu me sinto em um pequeno oásis. Naquela noite então, com o vento soprando na pele e expulsando o calor que insistiu em castigar o dia, só faltou o cheiro de água, de chuva, pra que a sensação de acolhimento fosse completa. A disposição das mesas dá privacidade mas também permite a sensação de estar em grupo. As pessoas se aglutinavam ao meu redor, formando bandos, quadrilhas, trios, casais, mas também havia os que se sentavam em sua própria companhia, como eu. Ilhas de pessoas que quase se esbarram, flutuando naquele mar de intelectos ávidos.

Acompanhei com atenção a celebração de um aniversário em longa mesa a minha frente. Fotos, bolo e risos. Os convivas alegres e comunicativos trocavam amenidades e se organizavam para ouvir o aniversariante que iniciou a narrativa de um livro infantil - acredito que de sua autoria. Com o livro repleto de gravuras virado para os convidados, passava as páginas e declamava o texto que já sabia de cor, numa entonação mágica, com um ar moleque estampado no rosto que já beira os 50 anos. Boné virado na cabeça, cara redonda de quem determinou que será sempre feliz, não importa como! Os sons eram entrecortados, mas o contador de histórias era tão cativante em seus trejeitos e entonações, que eu prendia a respiração tentando escutar a narrativa. Então vieram os risos, as fotos e o bolo. Quase bati palmas e cantei parabéns! Quase abracei o aniversariante!

Pedi um machiatto com chocolate branco e uma tapioca de queijo e coco. Tudo bem servido e farto. O garçom atencioso se esforçou por atender rápido a todos que pareciam se apressar para ir também alimentar o espírito com Adélia Prado:


Ensinamento


Minha mãe achava estudo 
 a coisa mais fina do mundo.
 Não é. 
 A coisa mais fina do mundo é o sentimento. 
 Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, 
 ela falou comigo: "Coitado, até essa hora no serviço pesado". 
 Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente. 
 Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.


Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto, 
desses que tocam trombeta, anunciou: 
vai carregar bandeira. 
Cargo muito pesado pra mulher, 
esta espécie ainda envergonhada. 
Aceito os subterfúgios que me cabem, 
sem precisar mentir. 
Não tão feia que não possa casar, 
acho o Rio de Janeiro uma beleza e 
ora sim, ora não, 
creio em parto sem dor. 
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. 
Inauguro linhagens, fundo reinos 
(dor não é amargura). 
Minha tristeza não tem pedigree, 
já a minha vontade de alegria, 
sua raiz vai ao meu mil avô. 
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. 
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Impressionista

Uma ocasião, 
meu pai pintou a casa toda 
de alaranjado brilhante. 
Por muito tempo moramos numa casa, 
como ele mesmo dizia, 
constantemente amanhecendo.

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