sábado, 30 de novembro de 2013

A próxima curva


Lá estava de novo. Mais alguns passos e ela chegaria na curva da estrada. Mais uma curva, mais um ano. Os passos ritmados diminuiam sempre nessa etapa da viagem, era tempo de refletir, medir o chão, olhar pra trás e relembrar. Vasculhar a bagagem e se livrar do peso morto que fazia pesar os ombros. Talvez sentar um pouco à beira do caminho e respirar bem devagar, como se algum dia ela fosse realmente compreender o significado de d-e-v-a-g-a-r. Não custava tentar.
Os sons se intensificaram ao seu redor. Quanto mais ela se esforçava para calar seus temores ou conter sua empolgação pelo que viria após a curva, mais alto podia ouvir o ritmo acelerado do coração, o ar que expelia dos pulmões e a mente em turbilhão.
Ela pediu aos pensamentos que, ao menos, se organizassem, quem sabe uma fila por ordem de tamanho, importância, qualquer coisa, desde que a deixassem... o quê, mesmo? pensar, lembrar, reviver, superar, corrigir, expurgar, entender, esquecer e finalmente prosseguir.
A curva se tornou um borrão e só então ela percebeu o rosto molhado com a chuva da alma que se expressava livremente ao passar por cada memória, ao rever rostos, falas e atitudes, suas e de outros - importantes, risíveis, ferinas, dignas de nota - que a traspassaram como raios. As lágrimas correram pelo rosto e limparam o coração, expulsando mágoas e clareando a visão. 
A curva ficou nítida novamente. Ela se ergueu, sentiu os ombros mais leves, respirou fundo o ar do fim do dia, da quase noite que se aproximava, piscou e devolveu aos olhos o brilho esperançoso e também melancólico que sempre os acompanhava. Correu as mãos pelo próprio corpo, alisando o vestido vermelho, sentindo o comichão e a curiosidade pelo que viria. Ergueu a cabeça, endireitou os passos e deixou um sorriso brincar nos lábios.
Esqueceu a fadiga, lançou um último olhar para trás e retomou a caminhada, usando o ritmo dos pés para embalar os planos que teimavam em sussurar em seus ouvidos. Agora era seguir adiante, cantarolando a música da vida que se desdobrava a sua frente.
E do nada surgiu de mansinho uma vontade louca de correr!





quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Um café e um amor, por favor!

Hoje cedo cometi meu primeiro pecado capital, após uma estadia de 10 dias em um spa. Fui tomar café no McDonalds, com pão na chapa, sem um pingo de culpa. Faço isso sempre, quer dizer, fazia constantemente, e depois de um longo e tenebroso inverno, voltei hoje.
Tudo começou com o copo do McDonalds. Sabe como é, aquele copo com tampa plástica e um furinho para sorver o café. Também tem um protetor, um tipo de cinto de papelão, em volta do copo que protege a mão do calor. Mas a verdade é que sou viciada no café, quer dizer, no copo do McDonalds porque ele me lembra aqueles filmes do FBI, em que todos tomam café num copo desses e conseguem resolver todos os crimes.
Eu fico lá, sentada numa mesa com sofá de lanchonete, segurando aquele copo, bem compenetrada, sorvendo em goles pequenos o café com leite e me sentindo uma verdadeira detetive, superinteligente. Observo o lugar com calma, arquivando mentalmente as expressões faciais, as palavras soltas, as cenas do cotidiano que me rodeiam. Algumas pessoas são tão sérias de manhã que fico imaginando como chegam ao final do dia. É sempre divertido assistir o show de vida que as crianças oferecem. Elas são sempre espontâneas, encantadas com o simples, é revigorante de se ver.
Frequento o McDonalds a pelo menos 3 anos, mas apenas no café da manhã. Algumas vezes, não parece que meu dia começou, até que eu passe por lá. Em todo esse tempo, cataloguei alguns rostos que se tornaram familiares, mas há um casal que me encanta. Eles estão sempre lá, juntos, tomando café da manhã. Um senhor e uma senhora de pelo menos 60 anos. Sentam-se sempre na mesma mesa. Ela traz o jornal, ele faz o pedido no balcão e traz para a mesa. Eles tomam o café, comem o pão e, pasmem, conversam e sorriem um para o outro, todos os dias, durante os 3 anos que presencio o comportamento deles.
Algumas vezes gargalham, lembrando casos de família, ou comentam as notícias do jornal. Não falta assunto, nem bom humor. Ele tem uns olhos atentos que se fixam na sua companheira, escutando o que ela diz com muita atenção, reconhecendo com prazer a alegria de estar com essa mulher. E ela corresponde a tudo, repousando a mão na dele e concordando com algo que ele disse.
Acho os dois um fenômeno. Em pleno século XXI, em que o divórcio é comum e os homens (e até mesmo as mulheres) estão sempre procurando uma maneira de "parecer" solteiros, é insólito ver um casal junto por tanto tempo, com tal nível de intimidade e entendimento um do outro. É milagroso, na verdade. Conheço mais uma dúzia ou um pouquinho mais de casais que podem ser colocados nessa categoria, que confirmam a possibilidade de que o amor pode vencer o tédio, o cansaço, as adversidades, os defeitos e, principalmente, o tempo, que pode ser um carrasco de um relacionamento.
Não vou voltar tão cedo ao McDonalds, estou fugindo de pão na chapa (pelo menos por uns tempos, nunca diga nunca), mas sei que quando voltar, eles vão estar lá, na mesma mesa, repartindo o café, o jornal, a conversa e a vida.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Uma coruja vermelha

Cada dia que passa eu fico mais certa de que qualquer hora vou virar coruja. Essa ave enigmática e que parece estar sempre observando o mundo e refletindo sobre ele. Fui de novo para o spa de Uberlândia (terceira vez esse ano, um recorde) e encontrei uma coruja vermelha. Linda, graciosa, valente protegendo sua casa e suas crias, um show. Não consegui nem mesmo tirar uma foto, porque era só chegar um pouquinho mais perto e ela voava e se escondia no meio do mato. Aqueles olhos enormes me encarando. Talvez na próxima eu consiga me aproximar.

Digo que vou virar coruja porque acho que é um passinho de nada. Afinal, elas são tão parecidas com as mulheres, cheias de mistério, símbolos da reflexão, da sabedoria, girando a cabeça em todas as direções e observando a tudo e a todos. 

Como eu sempre digo, o spa é um lugar altamente democrático, onde as pessoas se mesclam independente de berço, cor, conhecimento, posses. Aprendo sempre ali que passar fome emagrece e que as pessoas querem mesmo é ser ouvidas. Contar suas lidas e histórias e ouvir dos outros o incentivo, o conselho, a solidariedade, ou mesmo o silêncio amigável já é estimulante.

Minha amiga torturada da vez foi a Gláucia (mas ela já conhecia o spa e não faz nem cara de sofrimento). A gente se conhece desde a infância, 7 ou 8 anos. Estudamos juntas na adolescência (bom, eu estudava, rsrs) e foram muitos os dias em que caminhamos juntas para o colégio, rindo e contando histórias, ou inventando outras com a nossa imaginação fértil.

A gente não se via a um tempão (não vou dizer quantos anos porque os matemáticos de plantão vão me chamar de velha e eu sou apenas antiga), basta dizer que casamos, tivemos filhos e eles já cresceram, separação, divórcio, vida que segue, e só agora nos reencontramos. Mas o reencontro fez parecer que foi ontem a nossa despedida, um tchauzinho, até amanhã. A amizade é a mesma, as risadas e brincadeiras também, as histórias são mais longas e os filhos estão sempre nelas, e as lendas que nós criamos são impagáveis. Foi uma estadia muito boa e deu até pra colocar o papo em dia, quando ela não estava dormindo ou eu correndo (é mais ou menos como uma lebre e uma tartaruga amigas). 

Mas ela é a tartaruga mais bonita e atraente que eu já vi. Cantora, compositora, poeta, um espetáculo. E eu sou uma lebre mandona que ela aguenta com uma carinha tão boa (pensando com os seus botões: cadê o botão de DESLIGA???). No final, dá tudo certo. Ela dorme, eu corro, a gente sai, passeia, se diverte e volta rindo. 

Fiz novas e boas amizades. Ouvi e contei histórias, recebi conselhos, ensinei do meu jeito desajeitado algumas delas a correr no parque, outras apenas torturei (rsrs), mas a lembrança de todas vou guardar com muito carinho. Tem jeito melhor de passar fome?? Melhor que isso só quando eu virar coruja...