sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Rito de passagem

Ela instituiu um novo ritual para a passagem de ano. No último dia de 2011, quando o sol ainda se espreguiçava timidamente, criando forças para mais um dia de brilho, ela sentou-se no chão, embaixo da janela entreaberta, abriu a primeira caixa de guardar lembranças e foi passear dentro da própria cabeça, capturando todas as memórias tristes, as mágoas, as dores, os momentos difíceis de atravessar.
Lembrou-se do Caio F. Abreu: "Essa morte constante das coisas é o que mais dói". E de novo sentiu cada dor que passou.
A cada memória encontrada, ela detinha o olhar sobre o ocorrido,  sentia na boca o gosto ocre, amargo, e deixava cair dentro da caixa. É claro que as lágrimas vieram. Escorregavam devagar pelo rosto, flutuando em queda livre até cobrir a memória que repousava na caixa nº 01. 
E pouco a pouco todas elas foram saindo, um cortejo triste, capenga, mas necessário. A morte de alguém querido, as saudades, o afastamento de pessoas que lhe eram caras, as rejeições que sofreu e as que infligiu a outras pessoas, os nãos, os tombos, os momentos de desamparo, os vales escuros, escorreram todos para a caixa que, ao encher, transformou-se em um cálice com um líquido escuro e espesso. Ela tomou tudo, até a última gota, e foi ao banheiro fazer xixi. A manhã se fora.
Com a segunda caixa sob o braço, procurou o conforto do sofá. Passeando de novo em si mesma, não precisou procurar muito. As memórias alegres voejavam em torno dela, como libélulas ou fadas, com asas coloridas e brilhantes. Os bons momentos começaram a fazer seu efeito. O sorriso brotou, a cabeça ficou leve e ela sentiu de novo todas as boas emoções que viveu em 2011. Amizades, viagens, reencontros, beijos, abraços, emoções boas que fazem o corpo fluir, derreter e se esparramar. Casamentos, aniversários, nascimentos, todas as celebrações, grandes e pequenas, surgiram em uma dança divertida, cruzando sua mente e pousando alegremente na caixa nº 02, que já transbordava. Novamente a mágica aconteceu. O cálice agora borbulhava com um líquido dourado e ela bebeu devagar, saboreando o gosto adocicado e sentindo cócegas no nariz com as bolhas. Quando deu por si, estava esparramada no sofá, com a cabeça pendendo do assento e as pernas apoiadas no encosto. Adélia Prado sussurrou no seu ouvido: "O que a memória ama fica eterno". Escurecia lá fora.
Levantou-se, abrindo os braços e se espreguiçando, buscou a terceira e última caixa e sentou-se à mesa. A lua derramou seus raios pela janela, acolhendo o ano velho que se recolhia, e ela começou a jornada dentro de si para trazer os sonhos que colocaria na última caixa. Os olhos se fecharam pois era desnecessário olhar para fora, a respiração concentrada era o único som. E eles começaram a pular para a caixa. Saiam de seus ouvidos, pela boca entreaberta, escorregavam pelos fios compridos de cabelo, escalavam seus braços e pernas, usavam o nariz como trampolim e se amontoavam na caixa. Tinham cores e formatos diferentes, não havia dois iguais. Mas pareciam amigos de longa data, tagarelando e discutindo o futuro dela. Alguns queriam formar fila, por ordem de chegada, ou tamanho, ou idade (alguns eram bem antigos). A esperança resolveu se intrometer antes que tudo virasse uma grande confusão. Como uma brisa leve perpassou os sonhos, aliviando a tensão entre eles, criando uma harmonia e eles se deram as mãos e se dispuseram em um grande círculo. 
A fé, uma companheira antiga e persistente que ela trazia no coração, postou-se no centro da roda, tocando cada sonho com suas mãos leves, olhando com carinho e atenção para cada um deles, beijando suas frontes e trazendo paz.
Ela se levantou com muito cuidado, pegou a caixa que se transformara em uma espécie de aquário seco, povoado com seus ideais e sonhos para o futuro. Abriu espaço na estante em frente ao sofá e colocou a caixa ali, sem tampa - não se pode sufocar os sonhos e eles têm de transitar livremente, todos sabem disso - e repetiu com Fernando Pessoa: "tenho em mim todos os sonhos do mundo". Foi se arrumar para receber o novo ano que iria nascer logo. De banho tomado, perfumada, vestido branco e sandálias novas, saiu porta afora para celebrar!!

domingo, 25 de dezembro de 2011

Lista para o Ano Novo

Reza a tradição que é preciso fazer uma lista de desejos, intenções ou promessas que se pretende cumprir no ano que se inicia. O perigo da lista é não passarmos da pretensão e com isso ficarmos desacreditados. O perigo da lista publicada em um blog é não passarmos da pretensão e ficarmos desacreditados publicamente!! Mas como sempre vale a intenção, segue minha lista para 2012:

1. CONQUISTAR O MUNDO - começando pelo meu mundo interior, o que já vai me dar um trabalho e tanto. Mas o que é a vida sem um desafio? "Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia, porque o mundo pertence a quem se atreve e a vida é 'muito' para ser insignificante" (Augusto Branco).





2. EVITAR DORES DE CABEÇA DESNECESSÁRIAS - precisa falar mais? 








3. LER TODOS OS LIVROS DO MUNDO - Tá bom, vou ser mais realista: ler todos os livros da minha estante (e parar de comprar outros antes de ler os que estão na fila de espera, não é justo com eles furar a fila!).







4. ANDAR DESCALÇA NA PRAIA - Pelo menos uma vez nesse 2012 que está chegando. Meus pés estão com saudades da areia...





5. PENSAR BEM ANTES DE FALAR - Bom mesmo era falar o estritamente necessário, mas isso eu ainda não consigo nem desejar, quanto mais cumprir!






6. APRENDER A DANÇAR - não posso viver com medo de ser processada por lesões corporais, certo?







7. VIAJAR MUITO - Próxima parada: Paris. Última parada: quem sabe até lá já tenham descoberto que Marte tem umas praias legaizinhas!!









8. APRENDER A TOCAR VIOLÃO  - sonho antigo, será que dessa vez eu faço acontecer?





 9. COLOCAR OS PÉS NO CHÃO SEM ABRIR MÃO DOS SONHOS QUE ME SUSTENTAM.







10. ENCONTRAR ALGUÉM PARA DIVIDIR UMA XÍCARA DE CAFÉ - sem elogios rasgados ou um olhar clínico; sem promessas impossíveis mas com carinho real; sem exigências desmedidas, mas com o coração aberto; sem bagagem, mas com experiência de vida. 

Isso é natal!




sexta-feira, 23 de dezembro de 2011


Olhando para trás


Minha retrospectiva (palavra imponente!)

Retrospectiva vem do latim, retrospectare, e significa uma celebração de eventos ocorridos, normalmente organizada ao final do ano referente aos eventos ocorridos naquele ano. 
Eu chamo a minha retrospectiva anual de balanço. Procuro um lugar tranquilo, estendo uma manta na grama, sob as árvores, me acomodo na sombra e começo a pensar em como foi mais um ano. O que eu fiz ou deixei de fazer; falei ou calei dentro de mim; sorri ou chorei de, com, para, por; senti falta ou  matei as saudades;  mudei ou guardei fundo no coração para que permanecesse imutável. 
É como assistir um trailer de filme, as partes que marcaram, pela alegria ou pela tristeza, se destacando na mente. E daí surge o balanço: o que eu poderia ou deveria ter feito diferente? É uma pergunta recorrente para todos, eu acho. Mas aprendi com o Fernando Pessoa que "pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou construir um castelo!".
E como me explicou Cora Coralina, "a vida tem duas faces: positiva e negativa. O passado foi duro mas deixou o seu legado. Saber viver é a grande sabedoria...". 
Na coluna de créditos, posso contar com amigos novinhos em folha. Pessoas que me encantaram e que viram em mim alguém em quem confiar, ou pelo menos alguém para rir junto, andar por aí, testar o mundo. Muito boa essa matemática, para mim, a mais exata que existe.
Também encontrei pessoas que me deram a impressão de terem caído de cabeça quando nasceram. Mas fazer o quê? Ninguém é perfeito, certo? Eu mesma já perdi uns parafusos pelo caminho, queimei neurônios e sei que tenho manias estranhas. Vai ver eles acham que eu caí de cabeça quando nasci! Vamos pulando esses eventos, deixando o tempo restaurar a ordem e aprendendo a não amarrar o cavalo em qualquer freguesia.
Também reencontrei grandes amigos de infância e adolescência, momentos coroados com abraços recheados de saudades e sorrisos, além de uma vida inteira de memórias para compartilhar! É tão bom!
Viajei e conheci lugares (o que são duas coisas completamente diferentes), testei meus limites, descobri que "a coisa mais fina do mundo é o sentimento", não é Adélia Prado? E sentimento é você quem cultiva, busca, reacende, inventa! Como o calor que se espalha por dentro quando você toma uma xícara de café quentinho em um dia muito frio.
Peço emprestada a sabedoria de Manoel de Barros para fechar minha retrospectiva: "Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito!".
Adeus 2011, Seja bem-vindo 2012!

quem precisa de mais?


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Presentes de aniversário

Ela não conseguia parar de pensar em como tinha sorte! Que presentes incríveis naquele aniversário:

1) Amigos que se importam e demonstram isso por telefone, e-mail, cartões virtuais, recados no facebook, flores, abraços e beijos.
2) Amigos que aparecem na sua porta para dar abraço, presente, desejar tanta coisa boa que você flutua.
3) Amigos que saem com chuva e tudo para encontrá-la na noite do seu aniversário e comemorar junto.
4) Amigos que não podem ir e avisam que não é esquecimento não, é compromisso, distância etc.
5) Filho de verdade e filhos postiços, que comemoram com apresentação do grupo musical e tudo, cantando juntos "É a vida, é bonita e é bonita..."

Dia bom, noite gostosa. E ela ainda ganhou discurso de aniversário escrito por uma amiga mais que querida, uma escritora e tanto, Sandra Cosseti:

"Red,
é difícil falar de alguém cujos olhos nos devoram, cujo sorriso nos cativa e cuja força nos motiva!
Ops! Será que é difícil mesmo? Só aqui teríamos mares e mares de palavras para dissertar, descrever, narrar.
Mas prefiro me limitar a alguns poucos vocábulos: amor, alegria, emoção, sabedoria, juventude, força e fé.
Eles te descrevem muito bem; caminham com você. Portanto, neste dia, nós temos pouco a te desejar: apenas que a mão de Deus, o teu Senhor, continue a te amparar.
Ops! Eu disse pouco?! Isto é simplesmente TUDO!
Beijos"

Os muppets

Semana passada fui ao cinema assistir os Muppets. Para pessoas da minha geração isto equivale a um reencontro com a turma do primário. Esses bonecos fantásticos fizeram parte do meu cotidiano e da minha infância e adolescência, junto com os bonecos da Vila Sésamo. Eles traziam incríveis programas com convidados muito especiais, mas a marca registrada da geração muppets é a comédia sem malícia, sem termos chulos e sem truques apelativos para aumentar a audiência - coisas comuns nos programas de auditório de hoje em dia, mesmo os infantis. 
Há uma cena no filme em que a produtora de uma TV diz aos muppets: Vocês não são mais famosos. Constatei isso vendo o filme. Enquanto eu rolava de rir com as piadas ingênuas e referências que me faziam recordar a infância, meu filho bocejava ao meu lado, achando tudo um tédio. Ao sair do cinema vi um garoto de mais ou menos 7 anos dizer à mãe: os muppets são chatos, não gostei deles.
Talvez ele ache que falta ação como nos desenhos que povoam seu imaginário. Não há monstros a serem derrotados, ou guerreiros espadachins, ou avatares, ou seja lá o que tem bombado nos desenhos de hoje. 
Bom, eu me diverti no filme, apesar de perceber que talvez o alcance dos personagens tenha diminuído consideravelmente. O humor ingênuo está em baixa, infelizmente. Mas é para isso que existem os fãs, para manter viva a chama de suas celebridades. Eu ainda me lembro quando ganhei o apelido de senhorita Piggy no segundo grau. 
Nem sei por que me chamavam assim. Afinal, eu não era gordinha, nem loirinha, nem tenho olhos verdes, nem era/sou esquentadinha... Ah, tá bom! Eu admito que era/sou esquentadinha.
Eu tinha até um Caco para receber minhas gentis cutucadas e ser alvo da minha ira. O Serginho foi um sapo a altura. Aguentou firme todos os golpes de karatê e nossa amizade dura até hoje. A gente se encontrou outro dia e, cada vez que ele fazia uma piadinha infame, eu contava para as filhas dele: Tá vendo, é por isso que eu batia nele!!
Foi bom rever a charmosa Miss Piggy na telona. Como sempre, ela dominava a cena e o Caco também. Amei rever esses bonecos que me fizeram tão bem! Não desapareçam mais, Muppets, ainda existem uns quarentões que têm um lugar no coração para vocês! 
Um beijo,
Miss Piggy

sábado, 17 de dezembro de 2011

Tudo é relativo!


Set fire to the rain


Chuva de contradições

Parece que a chuva chegou para ficar em Brasília, pelo menos até abril. Quando as chuvas chegam nos encontram agradecidos por molhar a terra seca e trazer um pouco de umidade ao clima desértico. Mas essa gratidão dura pouco. A gente se fixa nos transtornos - trânsito lento, asfalto que parece sabão, tesourinhas inundadas, frio constante, cabelo em estado de calamidade pública. Enfim, uma enxurrada de mudanças que consideramos desagradáveis. 
Acho que a chuva, como a lua, também influencia o comportamento humano. As pessoas ficam mais quietas, soturnas, não tão amistosas como em uma manhã de sol. O papo é curto, a tolerância é zero, os humores são amargos. As notícias também parecem mais carregadas de tragédia, de absurdos comportamentos, como a enfermeira que espancou um cachorrinho e instigou a indignação de todos nas redes sociais. Apareceram pitbulls de todos os lados para acertar as contas com a assassina (o cachorro morreu). Também fiquei indignada, mas sabe o que mais me espantou? O fato de ela ter praticado o ato infame NA FRENTE DA FILHA DE 3 ANOS. Não me lembro de nenhum adendo sobre isso nos protestos que li na internet. O cão morreu, o que me entristece, mas a inocência da criança também foi espancada e pela própria mãe. Acho tão contraditório como o interesse humano deixa passar fatos graves como esse.
O que me lembra de um quadrinho que vi na internet sobre a morte do Stevie Jobs: 

A enxurrada de mensagens com frases do Stevie Jobs na internet foi emocionante, cheias de calor humano e sensibilidade, mas porque as pessoas não se comovem com a realidade da pobreza extrema que está estampada nos jornais todos os dias? Crianças no mundo inteiro morrendo de desnutrição, abandono, doenças que lhes foram transmitidas, tanta crueldade e nada comove. Mas não é preciso ir longe para ver essa realidade. O lixão da estrutural é logo ali. Os sinaleiros estão repletos de mendicantes - os quais, segundo as lideranças comunitárias, não precisam das nossas esmolas, mas de oportunidades. Não poderia concordar mais, exceto pelo fato de que nós não queremos ou não temos oportunidades guardadas no bolso para entregar no sinaleiro. Ou alguém se dispôs a unir a oferta e a procura social nos postos de recolhimento de brinquedos? Ah, gente, só para avisar, brinquedo usado não mata a fome!
Outra imagem chocante que vi no facebook esta semana foi esta:


Passei um bom tempo olhando nos olhos desse garoto, mas só consegui pensar que, acreditando ou não em Deus, o que deveria me chocar é o fato de que EU,  um ser humano com existência plenamente reconhecida, com certidão de nascimento e muitos outros documentos que a comprovam, além do testemunho dos transeuntes que passam por mim diariamente, EU, pessoalmente, não tenho um plano para esse garotinho ou qualquer outro em situação semelhante à dele. E isso é muito mais vergonhoso! Espero que a pessoa ou instituição que postou isso tenha planos, não, mais que isso, tenha atitudes que façam a diferença. Espero que possa encarar os olhos dessa criança como eu não consegui, independente da existência de Deus.
Por falar em Deus, em caso de Ele existir, imagino o sofrimento que é acompanhar as inúteis batalhas humanas. Enquanto os religiosos tentar converter os ateus, provando sua superioridade por ter um Deus que cuida dos mínimos detalhes de suas vidas, trazendo inclusive a tal prosperidade tão sonhada, um Deus criado sob medida para gravitar em torno dos seus umbigos e servir de desculpa para todo julgamento estúpido que eles se permitem fazer, vejo os ateus se lançarem furiosos contra essas crenças que consideram cegantes, alienantes e infantis, parecendo tão ofendidos com a fé alheia, como crianças emburradas porque não conseguiram convencer o amiguinho a jogar segundo as suas regras. A única coisa que não vejo nos posts da internet é a intenção pessoal de fazer a diferença. É o MEA CULPA de se descobrir omisso, indiferente, egoísta. A frase geral é: desculpe, essa luta não é minha! E começa o jogo do empurra: é do governo, é dos ricos que devem diminuir a desigualdade social, é das instituições filantrópicas, é SEMPRE do outro.
Puxa, o que a chuva não faz na alma! Enxurrada de idéias que faxinam as falsas intenções e nos obrigam a encarar o espelho e, se ainda houver esperança, se horrizar mais com o rosto que encontramos ali do que com as convicções e motivações alheias!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Pedido secreto de aniversário

Ela viu a estrela cadente que veio brindá-la e fez a lista de pedidos:

- um GPS para o coração, o dela estava muito desorientado esses últimos tempos;

- uma fórmula mágica para guardar no peito aqueles amigos lindos que não desistem de ficar por perto;

- fôlego dobrado para aguentar tanta felicidade;

- silêncio na alma para ouvir a sabedoria;

- espírito agradecido para reconhecer sempre como a vida dela era muito boa.

E a estrela piscou, sorriu e levou consigo a lista, prometendo notícias...
Ah, estrela! Não esquece o café!!

tolerância: óculos para a alma


domingo, 11 de dezembro de 2011

A esperança é azul

Ela sentiu o coração bater mais forte quando o avistou pela primeira vez. Estava tão absorta no mundo virtual que não havia reparado como ele chamava a atenção. A foto cresceu diante dos seus olhos e as borboletas farfalharam no peito. Será que era este? Não queria se adiantar, já passara por isso antes e a decepção que se seguia ao encontro doía muito. Pensou em desistir, ignorar a atração crescente que se apoderava dela, mas nunca fora boa em bater em retirada. Mais um dos seus defeitos, talvez o maior deles.
Namorou aquela imagem por dias e semanas a fio. Acompanhando com cuidado suas características, seus encantos, até mesmo seus possíveis defeitos. Se fechasse os olhos, podia vê-lo a seu lado. Podia quase tocá-lo, sentir sua textura, e o frisson que isso lhe causava era a prova de que precisava fazer alguma coisa.
Os primeiros contatos foram tímidos, não queria apressar o que parecia ser um relacionamento duradouro. Preferia manter uma distância respeitável e admirar de longe o que tanto lhe chamara a atenção. Os dedos formigavam e a boca ficava seca com a perspectiva de um encontro de verdade, com direito a tocar, saborear, encaixá-lo em seu corpo e sentir a promessa de conforto que emanava dele.
Tinha uma viagem marcada, não podia decidir tão rápido! Sentia que era uma escolha para toda vida, mas também não queria ficar separada dele por tanto tempo. Como fazer? O tempo dirá, não era o que diziam? Se tiver que ser, será. Foi viajar, planejando um feliz encontro para o retorno que se daria em breve. Pintava com cores alegres o momento mágico, escolhendo até o vestido que combinaria com o sorriso e o cabelo solto.
Aproveitou a viagem, a companhia da amiga, os lugares mágicos, os cafés. Voltou contente, pensando que sua ansiedade estava prestes a terminar. Era o mês do seu aniversário, certo? Podia acreditar em finais felizes, pelo menos nesse mês! Correu ao encontro com um sorriso aberto, prevendo a sintonia entre os dois, o quanto seriam bons companheiros, para início de conversa.
Horas depois, tomando vagarosamente seu café, ainda não conseguia entender o que acontecera. Como algo que parecia tão predestinado ao sucesso terminara antes mesmo de começar. O que fizera de errado? A atração instantânea lhe deixara cega e não percebera que  o encaixe não era possível? Maldita ansiedade que a envolvera como uma neblina densa, apenas para desabar sobre sua cabeça com a velocidade de um raio, lançando-a na tristeza do desencontro. 
De olhos rasos e coração pesado, preparou-se para o inverno que a rodeava, repetindo o mantra já conhecido para essas situações: "Não era para ser, não era para ser!". O que não aliviava a dor de perder o que nem mesmo chegou a ter. 
Ao lado da loja de sapatos, um bistrô a atraiu e ela sentou-se para pedir um expresso e um pedaço de torta, prêmios de consolação, sabendo que seria muito duro esquecer o lindo e único par de sapatos azuis, com uma delicada flor de fuxico rosa,  que fazia seus pés formigarem de desejo, mas que não veio no tamanho certo! Adeus, meu maravilhoso quase presente de aniversário!

Ei, Caio, eu te entendo perfeitamente...


Com partes de mim eu formo um ser atônito

Ontem à noite fui ao CCBB ouvir a Cássia Kiss declamar Manoel de Barros. A gente tem de chegar uma hora antes para pegar o ingresso na bilheteria. Fui com duas amigas e depois de pegar os ingressos fomos tomar café no Bistrô Bom Demais. Tapioca com queijo coalho e coco e um machiatto com dose dupla de expresso. 
No galpão, sentamos em cadeiras dispostas em círculo e esperamos a apresentação. Quando a atriz começou a declamar, magnificamente por sinal, esqueci a cadeira e deitei em uma rede disposta entre duas árvores, lá no quintal da casa de Manoel de Barros, pertinho do rio, com suas rãs, pedras e limo. Balancei devagar, com uma perna dobrada dentro da rede e o pé descalço, arrastando-se pela grama orvalhada, dando impulso ao balançar. O vento soprava de leve e eu me senti acalentada no colo da poesia.
"Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo que fui salvo", ouvi Manoel confessar e pensei que também me sinto assim a maioria dos dias. À noite, a história é outra, como ele, "uso a palavra para compor meus silêncios". Pus o pé no chão parando a rede e procurei o dono da voz. Manoel estava sentado em uma cadeira de balanço, pertinho da minha rede, com um sorriso largo, bonito, olhando para mim como se eu fosse pedra, rã, lesma, árvore, como se eu fosse desimportante. "Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes", ele me disse solene. Devolvi o sorriso, agradecendo toda aquela atenção, tão boa, tão profunda, tão bem-vinda. 
As palmas da platéia para a Cássia Kiss, muito merecidas por sinal, me recolocaram na cadeira. Peguei a bolsa e a jaqueta jeans, passei os dedos nos cabelos despenteados pelo vento e calcei as sandálias, saindo do galpão meio andando, meio flutuando. Noite boa, com cheiro de mato molhado! Obrigada, Cássia! Um beijo, Manoel!


sábado, 10 de dezembro de 2011

Sebo, café e bolo

O sebinho da 406 norte é um lugar para se ficar. Ele faz parte da minha história desde a época que cursei Letras na UnB. Quando a gente precisava encontrar livros a baixo custo, corríamos para lá. 
Hoje, além de todos aqueles livros esperando para te acolher, provocar e fazer um estrago no seu saldo bancário - confesso que tenho baixa resistência ao apelo dos livros, quando dou por mim já estou de braços cheios e carteira vazia -, o sebinho incorporou uma cafeteria ao local, aliás uma cafeteria maravilhosa, que inclui refeições deliciosas.
Ontem provei a sugestão do chef e quase pedi para ir à cozinha fazer-lhe um elogio. Tem também o fato de os garçons do Sebinho me entenderem. Quando peço um machiato com mais leite que café, eles entendem; quando peço café com leite separados, eles entendem. É incrível, não tenho que explicar e explicar, só falar e pronto. O pedido vem certinho para eu misturar meu café com leite e encontrar a cor preferida do meu estômago. Por tudo isso, lembro do Borges: "Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria".
O ambiente também é muito tranquilo. Do lado de fora, gosto das poltronas aconchegantes e numa noite como a de ontem, dá pra sentir uma brisa gostosa e refrescante, enquanto a gente pensa se café e bolo realmente combinam.
Lá dentro, ouvem-se conversas estimulantes, sobre viagens, livros, linhas de pensamento dos autores. Para um ouvinte desavisado, pode parecer um pouco pedante a forma como se expressam os grupos espalhados no salão, ou o senhor que troca idéias com a moça que atende na livraria. Há tanta certeza na interpretação das idéias dos autores. Eu me contento em deslizar para dentro do livro e conseguir um cantinho para espiar e, talvez, aprender alguma coisa, como fiz ontem com o conto do Julio Cortázar, A autoestrada do sul.
Quase entrei em pânico solidário com o engenheiro quando a realidade temporária se desfaz e os carros ganham velocidade livrando-se do engarrafamento. Aí eu pensei, como o ser humano é adaptável! Simplesmente, incrível! O que não nos mata, nos torna mais fortes (ou pelo menos nos ensina alguma coisa, mesmo a contragosto). 
Lembrei do Borges de novo: "A esperança é o mais sórdido dos sentimentos", e decidi que bolo e café não combinam, mas se você tem os dois a sua frente, adapte-se e faça uma boa refeição!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Coisas que eu descobri em Buenos Aires

"O tango é um pensamento triste que se pode dançar" (Discépolo)

Há dias em que nos sentimos assim...



e julgadores também, infelizmente!

Uma palavra boa muda o mundo!

O importante é não cair...

Expressar os sentimentos pode até não mudar a situação, mas melhora muito a nossa disposição!


Ninguém é completamente invisível...

Há lugar para todos e para cada um...


Borges tinha razão: "sempre imaginei que o paraíso era uma espécie de livraria". 

O nome da livraria é El Atheneo e ainda tem café lá!



Por fim, cabelo e sorriso fazem mesmo a diferença...