Ela instituiu um novo ritual para a passagem de ano. No último dia de 2011, quando o sol ainda se espreguiçava timidamente, criando forças para mais um dia de brilho, ela sentou-se no chão, embaixo da janela entreaberta, abriu a primeira caixa de guardar lembranças e foi passear dentro da própria cabeça, capturando todas as memórias tristes, as mágoas, as dores, os momentos difíceis de atravessar.
Lembrou-se do Caio F. Abreu: "Essa morte constante das coisas é o que mais dói". E de novo sentiu cada dor que passou.
A cada memória encontrada, ela detinha o olhar sobre o ocorrido, sentia na boca o gosto ocre, amargo, e deixava cair dentro da caixa. É claro que as lágrimas vieram. Escorregavam devagar pelo rosto, flutuando em queda livre até cobrir a memória que repousava na caixa nº 01.
E pouco a pouco todas elas foram saindo, um cortejo triste, capenga, mas necessário. A morte de alguém querido, as saudades, o afastamento de pessoas que lhe eram caras, as rejeições que sofreu e as que infligiu a outras pessoas, os nãos, os tombos, os momentos de desamparo, os vales escuros, escorreram todos para a caixa que, ao encher, transformou-se em um cálice com um líquido escuro e espesso. Ela tomou tudo, até a última gota, e foi ao banheiro fazer xixi. A manhã se fora.
Com a segunda caixa sob o braço, procurou o conforto do sofá. Passeando de novo em si mesma, não precisou procurar muito. As memórias alegres voejavam em torno dela, como libélulas ou fadas, com asas coloridas e brilhantes. Os bons momentos começaram a fazer seu efeito. O sorriso brotou, a cabeça ficou leve e ela sentiu de novo todas as boas emoções que viveu em 2011. Amizades, viagens, reencontros, beijos, abraços, emoções boas que fazem o corpo fluir, derreter e se esparramar. Casamentos, aniversários, nascimentos, todas as celebrações, grandes e pequenas, surgiram em uma dança divertida, cruzando sua mente e pousando alegremente na caixa nº 02, que já transbordava. Novamente a mágica aconteceu. O cálice agora borbulhava com um líquido dourado e ela bebeu devagar, saboreando o gosto adocicado e sentindo cócegas no nariz com as bolhas. Quando deu por si, estava esparramada no sofá, com a cabeça pendendo do assento e as pernas apoiadas no encosto. Adélia Prado sussurrou no seu ouvido: "O que a memória ama fica eterno". Escurecia lá fora.
Levantou-se, abrindo os braços e se espreguiçando, buscou a terceira e última caixa e sentou-se à mesa. A lua derramou seus raios pela janela, acolhendo o ano velho que se recolhia, e ela começou a jornada dentro de si para trazer os sonhos que colocaria na última caixa. Os olhos se fecharam pois era desnecessário olhar para fora, a respiração concentrada era o único som. E eles começaram a pular para a caixa. Saiam de seus ouvidos, pela boca entreaberta, escorregavam pelos fios compridos de cabelo, escalavam seus braços e pernas, usavam o nariz como trampolim e se amontoavam na caixa. Tinham cores e formatos diferentes, não havia dois iguais. Mas pareciam amigos de longa data, tagarelando e discutindo o futuro dela. Alguns queriam formar fila, por ordem de chegada, ou tamanho, ou idade (alguns eram bem antigos). A esperança resolveu se intrometer antes que tudo virasse uma grande confusão. Como uma brisa leve perpassou os sonhos, aliviando a tensão entre eles, criando uma harmonia e eles se deram as mãos e se dispuseram em um grande círculo.
A fé, uma companheira antiga e persistente que ela trazia no coração, postou-se no centro da roda, tocando cada sonho com suas mãos leves, olhando com carinho e atenção para cada um deles, beijando suas frontes e trazendo paz.
Ela se levantou com muito cuidado, pegou a caixa que se transformara em uma espécie de aquário seco, povoado com seus ideais e sonhos para o futuro. Abriu espaço na estante em frente ao sofá e colocou a caixa ali, sem tampa - não se pode sufocar os sonhos e eles têm de transitar livremente, todos sabem disso - e repetiu com Fernando Pessoa: "tenho em mim todos os sonhos do mundo". Foi se arrumar para receber o novo ano que iria nascer logo. De banho tomado, perfumada, vestido branco e sandálias novas, saiu porta afora para celebrar!!
Amei! Feliz 2012!
ResponderExcluirQue lindo...um ótimo 2012 pra vc, cheio de paz, prosperidade e muita saúde!!! Bejos
ResponderExcluirEssa é a Red que eu conheço! Um lindo texto, saído de uma alma limpa, na qual as dores jamais se sobreporão à esperança! Adorei, Amiga! Beijos.
ResponderExcluirUau... como é bom encerrar o ano assim: limpo de coisas ruins e ainda cheio de esperanças e sonhos! Parabéns pelo texto e feliz 2012 pra você e pra todos que tiverem o privilégio de degustar essas suas lindas palavras.
ResponderExcluirWgnr Co7!
Ótimo Red!
ResponderExcluirFarei isso com minhas "caixas", obrigado!
Beijo!
Renato.