Lá estava de novo. Mais alguns passos e ela chegaria na curva da estrada. Mais uma curva, mais um ano. Os passos ritmados diminuiam sempre nessa etapa da viagem, era tempo de refletir, medir o chão, olhar pra trás e relembrar. Vasculhar a bagagem e se livrar do peso morto que fazia pesar os ombros. Talvez sentar um pouco à beira do caminho e respirar bem devagar, como se algum dia ela fosse realmente compreender o significado de d-e-v-a-g-a-r. Não custava tentar.
Os sons se intensificaram ao seu redor. Quanto mais ela se esforçava para calar seus temores ou conter sua empolgação pelo que viria após a curva, mais alto podia ouvir o ritmo acelerado do coração, o ar que expelia dos pulmões e a mente em turbilhão.
Ela pediu aos pensamentos que, ao menos, se organizassem, quem sabe uma fila por ordem de tamanho, importância, qualquer coisa, desde que a deixassem... o quê, mesmo? pensar, lembrar, reviver, superar, corrigir, expurgar, entender, esquecer e finalmente prosseguir.
A curva se tornou um borrão e só então ela percebeu o rosto molhado com a chuva da alma que se expressava livremente ao passar por cada memória, ao rever rostos, falas e atitudes, suas e de outros - importantes, risíveis, ferinas, dignas de nota - que a traspassaram como raios. As lágrimas correram pelo rosto e limparam o coração, expulsando mágoas e clareando a visão.
A curva ficou nítida novamente. Ela se ergueu, sentiu os ombros mais leves, respirou fundo o ar do fim do dia, da quase noite que se aproximava, piscou e devolveu aos olhos o brilho esperançoso e também melancólico que sempre os acompanhava. Correu as mãos pelo próprio corpo, alisando o vestido vermelho, sentindo o comichão e a curiosidade pelo que viria. Ergueu a cabeça, endireitou os passos e deixou um sorriso brincar nos lábios.
Esqueceu a fadiga, lançou um último olhar para trás e retomou a caminhada, usando o ritmo dos pés para embalar os planos que teimavam em sussurar em seus ouvidos. Agora era seguir adiante, cantarolando a música da vida que se desdobrava a sua frente.
E do nada surgiu de mansinho uma vontade louca de correr!